Paul Schrader
"Mishima" / "Mishima: A Life in Four Chapters"
(EUA - 1985) - (121 min. - P/B - Cor)
Ken Ogata, Masayuki Shionoya, Junya Fukuda, Hiroshi Mikami.
Paul Schrader é oriundo da família cinematográfica de Martin Scorsese, sendo o argumentista de "Taxi Driver", "Touro Enraivecido" / "Raging Bull" e "A Última Tentação de Cristo" / "The Last Tentation of Christ", mas também de "Yakuza" de Sidney Pollack ou "Obsession" de Brian de Palma, entre outros. Este homem, nascido em 1946 em Grand Rapids no Michigan, iniciou-se no cinema através da crítica. De formação universitária, escreveu um ensaio que ficou famoso sobre Ozu, Bresson e Dreyer. Mas a carreira de argumentista não iria poder viver sem o cineasta e a passagem a realizador não se fez esperar.
Possuindo um olhar muito crítico sobre a sociedade norte-americana e o cinema clássico, realizou em 1977 "Blue Collar", focando a vida de um sindicato, através da amizade de três homens, vítimas das suas próprias engrenagens. Inevitavelmente a memória recorda-nos "Há Lodo no Cais" / "On the Waterfront" de Elia Kazan, embora esta seja uma película viciada na sua carga dramática (1).
Se no seu primeiro filme Paul Schrader nos oferece a América, ela vai continuar nas suas duas obras seguintes, as quais acabaram por constituir uma determinada trilogia americana. "Hard-Core", que em Portugal teve o título de "A Rapariga na Zona Quente", é o relato de uma jovem oriunda de uma família da classe média que desaparece numa excursão, indo o pai (George C. Scott) encontrá-la nos "subterrâneos" do "hard-core", oferecendo-nos a imagem perfeita do funcionamento da indústria pornográfica nos anos setenta e dos ambientes castradores da liberdade.
Para muitos, estava-se perante um olhar puritano mas "American Gigolo", que criou uma certa imagem de Richard Gere (2), envia-nos para o outro lado social da América. É o negócio do corpo que está em jogo: a troca e a venda, a vida e a morte, numa roleta implacável. Richard Gere tornou-se num dos galãs dos anos oitenta e muitos lhe copiaram o estilo, hoje é um valor mais que seguro do cinema norte-americano.
Em 1982 Paul Schrader decide fazer o remake de "Cat People" de Jacques Tourneur, no qual brilhava a figura de Simone Simon a par da famosa arte da elipse do filho de Maurice. "A Felina" iria ser Nastassja Kinski, no seu papel mais sensual de sempre (3) e, mais uma vez, nos encontramos perante as capacidades de metamorfose do corpo, mas ainda longe do que iríamos descobrir com o cinema de David Cronenberg. Foi nesta obra que Giorgio Moroder deu decididamente nas vistas, apesar de já ter assinado a banda sonora de "American Gigolo" e depois lá veio aquela versão tintada e restaurada da "Metropolis" de Fritz Lang. Mas voltemos à estrada de Paul Schrader, o investimento do Estúdio no filme foi imenso e o fracasso atingiu o mesmo nível, terminando "Cat People" por se transformar no "Do Fundo do Coração" / "One From the Heart" de Paul Schrader.
Depois de "Cat People", o silêncio instalou-se em redor do realizador, só sendo quebrado quando se descobriu que Paul Schrader tinha conquistado o que Elia Kazan, Roman Polanski, Nicholas Roeg e Bob Rafelson tinham perdido: transportar a vida do escritor japonês Yukio Mishima para o grande écran. No entanto, não foi propriamente Paul Schrader que conseguiu abater os obstáculos à realização mas sim Francis Ford Coppola, que seria, com George Lucas, o produtor de "Mishima: A Life in Four Chapters” / “Mishima".
Projecto de vulto e de dificuldades imensas, acabaria por ser mal recebido tanto no Japão (onde a figura de Mishima continua a ser para muitos um tabu), como na América, enquanto a Europa via com algumas reservas a obra do americano sobre o japonês.
Yukio Mishima (pseudómino de Kimitake Hiraoka), como muitos sabem é um dos mais importantes escritores japoneses e o mais célebre no mundo ocidental tendo Margueritte Yourcenar escrito um belo ensaio sobre a sua vida e obra. A sua longa obra literária é bastante extensa, mas também diversificada, pois nela encontramos romances, novelas, contos, ensaios, teatro e escritos de viagem assim como mantinha uma bem interessante correspondência com outro vulto enorme da Literatura Japonesa: Yasunari Kawabata, ao mesmo tempo que escrevia os denominados romances populares tão do agrado do público japonês e que surgiam na imprensa popular sempre com enormes tiragens. Yukio Mishima obteve três dos principais prémios Literários do Japão e criou uma obra extremamente bela (4), mas a sua vida era o espelho da sua obra e a sua obra o reflexo da sua vida.
O nacionalismo e a honra que defendia eram a memória dos velhos samurais, essa mesma memória de que Akira Kurosawa falou nas suas memórias, perdida para sempre num Japão industrializado e em muitos aspectos ocidentalizado, fruto da ocupação americana. Foi o amor de Yukio Mishima pela escrita do sangue que o conduziu para a morte. A 25 de Novembro de 1970 decide, com quatro alunos das suas Forças, tentar um Golpe de Estado que sabia de antemão votado ao fracasso, com o objectivo de repor a Ordem Imperial. Na véspera enviara para o editor "O Mar da Fertilidade", a sua última obra, composta por quatro volumes, verdadeiro testamento literário de um dos maiores escritores do século xx. Vivendo numa sociedade virada para o consumo e querendo impor o amor pela tradição, Yukio Mishima faz o "hara-kiri" perante uma multidão de soldados e jornalistas que, incrédulos, assistem à partida do Último dos Samurais.
Paul Schrader, com "Mishima" / “Mishima: A Life in Four Chapters”, realiza o mais belo dos seus filmes, optando por dois registos distintos ao longo da película, o biográfico, ostentando as suas habituais marcas cinematográficas e rodado a preto e branco e o teatral, registado a cores, ao encenar diversas passagens de livros do célebre escritor japonês.
Nunca é de mais referir a portentosa interpretação do actor Ken Ogata, que nos oferece um Yukio Mishima bem credível, assim como a banda sonora criada para os diversos segmentos do filme, profundamente envolvente, da responsabilidade do genial compositor Philip Glass, que aqui assina um dos seus melhores trabalhos para cinema, sendo parte dos temas interpretados pelo famoso Kronos Quartet.
"Mishima: A Life in Four Chapters” / "Mishima” revela-se, segundo o nosso ponto de vista, a melhor obra cinematográfica de Paul Schrader, um daqueles filmes que nos oferece de forma surpreendente o universo literário de um escritor, ao mesmo tempo que nos dá a conhecer a sua vida, sem qualquer subterfúgio, obtendo um resultado surpreendente.
“Mishima: A Life in Four Chapters” / “Mishima” de Paul Schrader revela-se um maravilhoso convite para aqueles que não conhecem a obra literária de Yukio Mishima a descobrirem, já os que a conhecem, têm aqui uma excelente oportunidade para ficarem a saber um pouco mais deste escritor japonês , uma figura incontornável da universo Literário do século xx.
Nota: A Criterium editou um dvd soberbo de "Mishima: A Life in Four Chapters", com excelentes extras, como é norma neles e nunca é demais referir que todas as obras editadas por eles são sempre em cópias restauradas, mas como também sabemos os filmes desta editora são apenas de zona 1, no entanto em Inglaterra deu-se finalmente inicio à edição em zona 2 dos filmes da Criterium, uma excelente notícia para os cinéfilos, esperemos que em breve cheguem a Portugal.
(1) - Quando Marlon Brando teve conhecimento que Elia Kazan tinha denunciado diversos colegas de profissão nos célebres interrogatórios promovidos pela comissão criada pelo senador, de má memória, Joseph McCarthy, manteve uma postura quase incomunicável com o cineasta. Recorde-se que Elia Kazan foi o homem que dirigiu Brando em "Um Eléctrico Chamado Desejo" / "A Streetcar Named Desire", tanto no teatro como mais tarde no cinema. E embora o filme tenha recebido uma chuva de Oscars e de ser uma obra incontornável, a questão política/ideológica acabou sempre por persegui-lo. No entanto, poderemos dizer que "Há Lodo no Cais" / "On the Waterfront" é uma das mais belas obras da história do cinema clássico norte-americano.
(2) - Por acaso recordam-se dele nos fabulosos "À Procura de um Homem" / "Looking for Mr. Goodbar" de Richard Brooks ou em "Os Dias do Paraíso" / "Days of Heaven" do Terence Malick, ambos já disponíveis em dvd?
(3) – Recomendamos o DVD, que possui excelentes extras.
(4) - Não deixem de ler "O Marinheiro Que Perdeu as Graças do Mar", “O Tumulto das Ondas”, “Depois do Banquete”, “Neve na Primavera”, “Morte no Verão” e “Sede de Amar”, todos editados no nosso país e já agora procurem no livro "A Borboleta de Nabokov" o excelente texto que António Mega Ferreira publicou na época no Jornal de Letras e que se encontra reunido no livro atrás referido. E, claro, depois só terão que ler a restante obra do Mestre Japonês, e se gostar de ler em francês tem sempre à sua disposição os livros de bolso da Folio/Gallimard, onde pode encontrar a totalidade da obra de Yukio Mishima, a preços bem convidativos.
Rui Luís Lima