Pier Paolo Pasolini, o cineasta "maldito", teve em Ninetto Davoli, companheiro inseparável de Totó no filme “Passarinhos e Passarões”, o amigo acima de qualquer suspeita, sendo aquele que permaneceu no círculo de Pasolini desde que ele decidiu fazer cinema até ao último dos dias do cineasta. E dizemos isto porque no dia em que o realizador foi assassinado, na praia de Óstia, jantou em casa de Ninetto na companhia da mulher deste e dos seus dois filhos.
"Accattone"
Mas por falar de amizades, e as de Paolo foram poucas mas duradoiras, nunca nos poderemos esquecer desse outro cineasta chamado Bernardo Bertolucci. O pai de Bernardo, um dos maiores poetas italianos, era amigo de Pasolini, tendo até editado um dos seus livros, mas no dia em que pela primeira vez o jovem Bertolucci viu Paolo, teve medo: tinham acabado de bater à porta dos Bertolucci e o filho do poeta foi abrir, quando deparou com a figura do futuro cineasta, então apenas poeta e este lhe disse que pretendia falar com o pai, Bernardo não o mandou entrar e fechou a porta, dizendo para ele esperar lá fora; Attilio Bertolucci, ao ver os receios do filho perante Pasolini, deu uma sonora gargalhada e disse-lhe que ele era um poeta seu amigo, um grande poeta, que escrevia assim a sua visão de “Roma Cidade Aberta de Roberto Rosselini:
"Mamma Roma"
«Que golpe no coração, perante aquele cartaz / já gasto… Aproximo-me, observo aquela cor / de um outro tempo que o rosto quente e oval / da heroína exibe, a palidez heróica do pobre, opaca, manifesta. / De súbito, entro! Sacudido por um clamor interior, / decidido a estremecer a cada recordação, / a consumar a glória do meu gesto. / Entro na arena, para o último espectáculo, / sem vida, personagens cinzentas, parentes, amigos dispersos pelos bancos, / perdidos na sombra, em círculos distintos / e esbranquiçados, no fresco receptáculo… / Subitamente, os primeiros enquadramentos. / Transtorna-me e arrebata-me… «l’intermitence du couer» / Encontro-me no escuro caminho da memória, nas misteriosas / câmaras onde o homem é fisicamente outro, / e o passado o banha com o pranto. /Contudo, tornado hábil pelo longo exercício, / não perco os fios: eis a Casilina, /sobre quem tristemente se abrem / as portas da cidade de Rosselini… / Eis a épica paisagem neo-realista, com os fios do telégrafo, as calçadas, os pinheiros, / os murozinhos descarnados, a mística / multidão, perdida nos afazeres quotidianos, / as tenebrosas formas de dominação nazi… / Quase emblemático já, o grito de Magnani, / sob as madeixas desordenadamente absolutas, / ressoa pelas desesperadas panorâmicas, / e nos seus olhares vivos e mudos / se adensa o sentido da tragédia. / É ali que dissolve e se mutila / o presente, e atroa o canto dos aedos.» (1)
"O Evangelho Segundo São Mateus"
Bernardo, um pouco envergonhado pelo seu medo, convidou Pasolini a entrar e este terminou por entrar na sua vida de cineasta, ao oferecer ao jovem Bertolucci o lugar de assistente de realização, durante a rodagem de “Accattone” e assim o futuro realizador de “1900” abandonou a poesia, tinha anteriormente recebido um prémio pela sua colectânea de poemas, decidindo partir para a conquista de outra forma de expressão: o cinema.
"Passarinhos e Passarões"
Curiosamente, foi devido a uma necessidade urgente de se exprimir de outra forma, para além das palavras escritas numa página em branco, que levou Pier Paolo Pasolini a se decidir pela Sétima Arte. Mas ele, nada sabia dessa nova arte e quando confessou a Fellini que pretendia fazer um filme, este disse que estava disposto a produzi-lo, no entanto necessitava de visionar algum trabalho do futuro cineasta.
"Rei Édipo"
Assim Paolo e Bernardo partiram para a aventura, mas quando Fellini viu os testes, desapareceu durante dias e o mesmo fez Pasolini, tal era o medo de ambos de confrontarem ideias acerca do que fora feito. Por fim, Federico Fellini confessou que não poderia produzir aquele filme, desistindo do projecto, mas outro produtor decidiu arriscar, oferecendo-lhe um excelente director de fotografia, para impedir os “excessos narrativos” de Pier Paolo Pasolini, o seu nome era Tonino Delli Colli, tendo a colaboração entre os dois homens sido estendida para outras películas, ao longo dos anos.
"Teorema"
“Accatonne” revelou-se como a pedrada no charco do neo-realismo e um cineasta começava a nascer, criando uma linguagem cinematográfica única, transformando-se rapidamente num Autor. O futuro acabaria por o revelar ao mundo. Ele que fez a sua “Medea” com Maria Callas na protagonista, mas dobrando a voz da Diva nas falas, através da sua amiga Laura Betti. Para muitos um choque. Tal como foi um choque quando ele ofereceu a sua visão do catolicismo, através do fabuloso “Il Vangelo Secondo Matteo” / “O Evangelho Segundo São Mateus”.
"Orgia"
Sempre polémico nos seus escritos, incompatibilizando-se com quase todos, a memória da morte do seu irmão durante a 2ª Grande Guerra às mãos dos partidários de Tito marcou-o para sempre, mas os escândalos que se foram criando à sua volta, muitos deles encenados mas alguns bem reais, começaram a tecer a sua perdição, como se fosse um pássaro de asas cortadas.
"Pocilga"
No início dos anos setenta do século xx, nasce a sua famosa “Trilogia da Vida” composta por “Il Decameron” / ”Decameron”, “I Racconti di Canterbury” / “Os Contos de Canterbury” e “Il Fiore Del Mille e Una Notte” / “As Mil e Uma Noites”, que iriam elevar a sua estrela ao firmamento cinematográfico, com o inevitável reconhecimento do seu génio. No entanto uma maçã, oferecida por uma “Eva” iria expulsá-lo do “Paraíso”, originando com a sua escrita a criação de mais inimigos, ao mesmo tempo que as suas noites eram cada vez mais perigosas.
"Medeia"
Por fim, num gesto perturbante, renegou a sua célebre “Trilogia da Vida” e decide “encenar” cinematograficamente os 120 dias da República de Salo, criada por Mussolini e seus seguidores, protegidos por um exército alemão à beira da derrota prestes a partir em debandada de uma Itália, à beira de ser conquistada pelas forças aliadas.
"Decameron"
“Salò o le 120 Giornate di Sodoma” / “Salo ou os 120 Dias de Sodoma” foi um imenso “escândalo”, tanto em Itália como em toda a Europa e foram poucos os que defenderam a simbiose da escrita do Marques de Sade com a História de Itália, onde a perversão andava de mãos dadas com a história recente. O cineasta não conseguiria através do seu inconformismo cativar o público, embora a aura de escândalo que a película oferecia, tenha conquistado um outro público.
"Os Contos de Canterbury"
Na primeira exibição da película, várias latas do filme foram roubadas da cabine de projecção e alguns pensam que as mesmas foram usadas para atrair Pier Paolo Pasolini à praia de Óstia, para as negociar e reaver, mas nessa noite fatal em que jantou pela última vez na companhia de Ninetto Davolli e a sua família, “Mama Roma” não o conseguiu levar de mota até aos braços de Anna Magnani, preferindo seguir o destino traçado pelo anjo negro de “Teorema”, ao encontro de uma morte violenta.
"As Mil e Uma Noites"
O mistério que envolveu a sua morte continua por deslindar, mas o seu cinema encontra-se bem vivo, continuando a oferecer uma das obras mais polémicas da Sétima Arte, à qual ninguém consegue ficar indiferente.
"Saló ou Os 120 Dias de Sodoma"
(1) – In “La religione del mio tempos”
“O Bosque Sagrado”
(Editora Gota de Água)
Rui Luís Lima
Pier Paolo Pasolini - (1922 - 1975) é um dos mais importantes cineastas do cinema italiano, para além de romancistas, dramaturgo e poeta, tendo tido uma enorme intervenção política através dos seus escritos em diversas publicações italianas, para além dos inúmeros livros que escreveu. Na sua filmografia destaca-se a célebre triologia da vida, assim como a película "Medeia" que teve como protagonista a célebre cantora de ópera Maria Callas, com quem mantinha uma conhecida amizade. Estamos perante uma figura que provocou sempre alguma polémica, mas cuja figura como intelectual e cineasta é incontornável.
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