"Pobre Pete" / "Manxman"
(Inglaterra – 1929) – (77 min. / Mudo)
Carl Brisson, Malcolm Keen, Anny Ondra, Randle Ayrtom.
Para muitos “The Manxman” é o último filme mudo de Hitchcock, para outros será “Blackmail” / “Chantagem”, que possui duas versões: a muda (a primeira a ser rodada) e a sonora (a segunda versão, surgida devido ao aparecimento do sonoro), que levou Alfred Hitchcock a refazer o filme, tendo até a voz da protagonista Anny Ondra (famosa actriz checa do cinema mudo) sido dobrada. Polémicas à parte, “The Manxman” é uma das obras-primas do cineasta do período mudo, a par de “O Inquilino Misterioso” / “The Lodger”.
Logo no início do filme parece que vivemos no melhor dos mundos, na famosa Ilha de Man, onde dois amigos de infância Pete e Philip, de condições sociais diferentes (um é advogado e o outro pescador), são como irmãos e será isso mesmo que iremos descobrir no cais. Depois vamos acompanhá-los até ao “Pub”, onde é assinada uma petição por causa das quotas do pescado e aí iremos encontrar pela primeira vez a filha do dono do bar, a bela Kate (Anny Ondra) e de imediato somos obrigados a reparar que aqueles dois homens nutrem um profundo amor por ela.
Se Pete (Carl Brisson) é expansivo, já Philip (Malcolm Keen) é introvertido. E durante a assinatura da petição iremos descobrir o célebre humor hitchcockiano, depois Pete já sozinho com o amigo decide declarar o seu amor por Kate, mas o pai dela é na verdade uma montanha inacessível e será Philip, devido à sua condição social, que irá transmitir os sentimentos do amigo à família de Kate, sendo a reacção do pai dela a pior. Nessa mesma noite, Pete irá encontrar-se com Kate, informando-a que irá partir para África em busca do sucesso, para depois a pedir em casamento e ela decide esperar por ele.
Durante a ausência de Pete, os laços de amizade de Kate e Philip transformam-se em amor, repare-se na forma como Alfred Hitchcock nos informa da transformação dos sentimentos dela, através das páginas da sua agenda/diário (a célebre economia de meios), amor esse, quase proibido devido à promessa dada por Kate a Pete. Quando a notícia da morte de Pete é conhecida, a reacção de Kate surpreende Philip, “estamos livres” diz-lhe ela e assim o seu romance começa a ter pernas para andar. Mas o destino também prega as suas partidas e o falecimento de Pete não passa de um erro, ele estava bem de saúde e rico e iria regressar para os braços da sua amada.
Alfred Hitchcock começa então a explorar, já com mão de Mestre, o sentimento de culpa e traição que invade Kate e Philip, basta reparar em toda a sequência na praia, quando Kate sabe do regresso do Pete, ao mesmo tempo que vamos vendo o aproximar do navio que transporta o pescador. E se esse sentimento de culpa é maravilhosamente trabalhado, já o suspense começa a invadir o espectador quando Kate se encontra com Pete: todos pensamos que ela lhe está a confessar os seus novos sentimentos para, só no final do diálogo, sabermos pelos intertítulos que ela aceitou casar com Pete.
Começa assim uma verdadeira via-sacra para Philip e quando Kate fica grávida já todos sabemos que a criança não é do marido. Nunca é demais recordar que esta película é de 1929 e só de pensar nas reacções dos espectadores de então, temos a noção perfeita de como este filme estava à frente do seu tempo, uma verdadeira pedrada no charco. Iremos assim encontrar mais tarde os dois homens em casa à espera da notícia do nascimento da criança, dois pais esperando pelo nascimento da filha, descobrindo-se nessa espera o contentamento de Pete, ao mesmo tempo que vemos a angústia de Philip.
Alfred Hitchcock sempre teve uma predilecção por louras, como todos sabemos, e Anny Ondra é na realidade a primeira loura hitchcockiana, de uma beleza absoluta, sendo filmada com a mesma intensidade que Grace Kelly em “Chamada para a Morte” / “Dial M for Murder”.
Com o nascimento da criança, o remorso começa a invadir Kate, terminando por fugir de casa, refugiando-se no escritório de Philip. E a mulher que encontramos está no limite das suas forças, a forma como Hitchcock a filma diz tudo e as suas roupas são uma espécie de luto por um amor que nunca chegara a nascer. Mas a carreira de Philip está no auge, tinha acabado de ser nomeado juiz da Ilha de Man e a indecisão apodera-se dele. Kate acaba por se suicidar lançando-se às águas do mar. E aqui temos um dos mais perfeitos “raccords” da obra de Alfred Hitchcock, quando as águas do mar ficam confinadas ao tinteiro do Juiz Philip no seu primeiro dia de trabalho no tribunal.
A culpa surge assim como o protagonista do filme, essa mesma culpa que muitos anos depois irá perseguir Cary Grant em “Notorious” / “Difamação”, depois de ter enviado Ingrid Bergman, a mulher amada, para os braços de Claude Rains, para ela espiar as actividades secretas do marido com quem se casou contra vontade. Será essa expiação da culpa que iremos encontrar no tribunal, quando uma mulher é levada ao juiz para este julgar. Ela tinha-se tentado suicidar e depois de ter sido salva por um polícia recusava revelar a sua identidade.
Quando Philip reconhece Kate, o mundo cai-lhe literalmente aos pés e a sua tortura tem início, aumentando quando Pete entra no tribunal com a família para recuperar a esposa. Porém, esta nega-se a voltar para os braços do marido e mais uma vez o suspense instala-se na(s) sala(s) (a do tribunal e a do espectador), até ao momento em que o pai de Kate aponta o dedo acusador ao Juiz, como o principal responsável dos acontecimentos. Philip, que entretanto de Juiz se transformara em réu, vê-se de repente como condenado, decidindo abandonar o lugar pelo qual tanto tinha lutado e parte com a mulher e a filha rumo ao desconhecido, debaixo dos olhares odiosos de toda a população da aldeia. Pete, o Pobre Pete, regressa à faina da pesca, olhando com tristeza as águas do mar.
Mais uma vez recordamos que este filme é datado de 1929 e embora não seja um dos favoritos do Mestre do Suspense, ele é uma obra-prima do cinema do período mudo, uma daquelas pérolas que merece ser descoberta, já está editado em dvd numa cópia deslumbrante. Por outro lado, toda a realização de Alfred Hitchcock possui todas as coordenadas da sua futura obra cinematográfica, não só através dos planos perfeitamente elaborados, como a magia com que ele trabalha o “raccord”, depois temos sempre a forma como ele filma os sentimentos dos três protagonistas, oferendo-nos uma lição dessa Arte que foi o Cinema Mudo.
“The Manxman” / “Pobre Pete” merece ser descoberto por todos os Hitchcockianos e pelo público amante do cinema, porque só olhando o passado poderemos compreender melhor o presente, cinematograficamente falando.
Rui Luís Lima
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