quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Ingmar Bergman - "Sonata de Outono" / “Hostsonaten”


Ingmar Bergman
"Sonata de Outono" / “Hostsonaten”
( Noruega – 1978) – (92 min. / Cor)
Ingrid Bergman, Liv Ullmann, Lana Nyman, Halvar Bjork,
Gunnar Bjornstrand, Erland Josephson, Georg Lokkerberg.

Quando alguém fala nos suecos mais importantes da História do Cinema, de imediato três nomes se destacam na nossa memória: o cineasta Ingmar Bergman e as actrizes Ingrid Bergman e Greta Garbo. Se o realizador é um dos nomes mais importantes da Sétima Arte já as duas estrelas, nascidas em décadas diferentes, foram de um brilho insuperável. Enquanto Garbo nasceu na época do Cinema Mudo, a bela Ingrid conheceu o sucesso durante o período sonoro, sendo uma das grandes estrelas do Cinema Clássico, como todos sabemos. E se Greta Garbo abandonou o cinema demasiado cedo, o célebre lema “Garbo Ri” já não surtia efeito perante as novas estrelas criadas em Hollywood, Ingrid Bergman trocou a capital do cinema em pleno apogeu, quando tinha o mundo a seus pés, partindo para Itália depois de se ter apaixonado perdidamente pelo pai do neo-realismo, Roberto Rossellini, regressando alguns anos depois a Hollywood que a recebeu de volta, de braços abertos.


Porém, durante largo tempo, foram muitos os que se interrogaram porque razão os dois suecos com o mesmo apelido, mas sem quaisquer laços familiares, não surgiam no mesmo filme? Os anos foram passando, até que surgiu um projecto na década de setenta, de seu título “Sonata de Outono” / “Hostsonaten”, sendo a produção alemã, embora as filmagens tenham sido feitas na Noruega. A razão era simples: Ingmar Bergman encontrava-se na época a residir na Alemanha devido a um problema com o fisco sueco, que o acusava de fuga aos impostos.


“Sonata de Outono”/ “Hostsonaten” oferece-nos o encontro entre Ingrid Bergman e Liv Ullmann, num daqueles duelos em que ninguém sai vencedor nem derrotado, porque ambas são dirigidas brilhantemente por Ingmar Bergman. Na época, aliás, falou-se muito em desacordos entre Ingmar e Ingrid por causa da abordagem da personagem interpretada pela actriz sueca, ambos tinham posições diferentes, para não dizer antagónicas, mas quando se vê o filme ficamos perfeitamente cativados pela forma como Ingrid Bergman trabalha a sua Charlotte, essa pianista que continua, apesar da idade, mergulhada na sua arte. E aqui, mais uma vez, é-nos oferecida a música de câmara, muito em especial um Prelúdio de Chopin, que nos é apresentado primeiro por uma filha envergonhada pela sua inépcia e depois por uma mãe que, do alto da sua autoridade artística, explica os sentimentos que presidiram à criação dessa obra de Frederic Chopin. E aqui percebemos que aquelas duas mulheres estão ali para se digladiar.


Mas voltemos um pouco atrás no tempo para entrarmos nesta história fabulosa de Ingmar Bergman. Charlotte (Ingrid Bergman) é uma pianista famosa e no dia em que o seu amigo Leonard morre no hospital, recebe uma carta da filha mais velha Eva (Liv Ullmann) a convidá-la para uma estadia na sua casa situada numa pacata aldeia, onde vive com o marido, um pastor protestante (Halvar Bjork), tal como o pai de Ingmar Bergman. Mãe e filha não se falavam, já lá iam sete anos, e mesmo quando o filho de Eva morreu afogado, a avó não teve tempo para visitar a filha. Ficamos assim de imediato a saber como funcionam os sentimentos de Charlotte e a sua relação com a sua arte, verdadeira paixão e fuga do quotidiano.


Quando Charlotte (Ingrid Bergman) se encontra com Eva (Liv Ullmann), tudo nos indica que aquela estadia será benéfica para ambas e nos encontramos no melhor dos mundos, porém lentamente iremos verificar que o passado está bem presente na memória de Eva e esta, por debaixo da sua aparente fragilidade, pretende fazer um ajuste de contas com a mãe, indo buscar todos os acontecimentos perturbantes de uma vida para assim o poder efectuar, de forma consciente.


Assim, nesse momento em que o casal aguarda a descida de Charlotte para jantar, esperando encontrá-la a envergar roupas escuras devido à morte do seu amigo Leonard (Georg Lokkerberg), ela irá surgiu num maravilhoso vestido vermelho e cheia de vida. Começa então o duelo entre ambas. Eva possui um trunfo poderoso, porque na sua casa está a viver a sua irmã Helena (Lena Nyman), que ela foi buscar à casa de saúde onde a mãe a tinha internado anos antes, para cuidar dela. E será no encontro entre Charlotte e Helena que Eva irá começar a sua escala no ajuste de contas de uma vida com a mãe. Essa mesma mãe que a obrigara a fazer um aborto aos dezoito anos, já que não acreditava no amor de adolescentes.


Porém, no interior deste duelo, temos um espectador: o pastor protestante marido de Eva, que no início nos surge como narrador, irá confessar à sogra que o seu casamento com a filha foi uma união onde o amor estava ausente, ele sabia que não era amado e só quando perderam a criança esse amor teve o seu nascimento.


Durante a noite Charlotte, que ficara profundamente chocada com a visão de Helena, embora tenha conseguido disfarçar os seus sentimentos perante todos, acorda no meio de um pesadelo, pensando que a sua filha doente a estava a agarrar na cama, essa mesma filha mais nova que nutre um profundo amor pela mãe como veremos, ao contrário de Eva (Liv Ullmann), que de filha dócil e tímida se transforma numa personagem sedenta de sangue, porque o passado permanece bem presente nela e ao encontrar a mãe na cozinha a meio da noite, decide ali mesmo travar esse ajuste de contas tão desejado ao longo da vida.


Muitos viram este filme como um reflexo da relação que o cineasta teve com o pai, tão bem retratada por ele no seu livro autobiográfica “Lanterna Mágica”, mas o que nos interessa aqui é, na verdade, a forma maravilhosa como Ingmar Bergman nos apresenta estas duas actrizes, numa verdadeira sonata onde o dueto feminino é o movimento principal desta película.


Por outro lado, neste filme, iremos encontrar a arte do grande plano, já que tanto Ingrid Bergman como Liv Ullmann nos surgem em planos espantosos, criados pelo cineasta e com uma contenção maravilhosa, basta recordar como, logo no início, Charlotte (Ingrid Bergman) fala para a câmara sem nunca o seu olhar se cruzar connosco, embora ele esteja em constante movimento. Já Liv Ullmann consegue, ao longo do seu duelo, oferecer-nos uma transformação facial que nos deixa perfeitamente atónitos pelo ódio que vai transparecendo no seu rosto, à medida que as acusações de uma vida aumentam.


No final da película iremos encontrar uma pianista que permanece no seu mundo musical, a viajar de comboio na companhia do seu amigo Paul, enquanto Charlotte regressa ao seu pacato quotidiano, depois de ter expulsado todos os demónios que a atormentavam. E quando a terminar nos são oferecidos os rostos dos três protagonistas, o cineasta consegue o prodígio de nos retratar a alma dos protagonistas. Ingmar Bergman, em “A Sonata de Outono” / “Hostsonaten”, assina mais uma obra-prima do cinema e Ingrid Bergman deixa-nos um dos mais belos testamentos que uma actriz pode oferecer a essa Arte chamada Cinema.

Rui Luís Lima

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