sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Ingmar Bergman - “Em Busca da Verdade” / “ Sasom i en Spegel”


Ingmar Bergman
“Em Busca da Verdade” / “ Sasom i en Spegel”
(Suécia – 1961) – (92 min. - P/B)
Harriet Andersson, Gunnar Bjornstrand, Max Von Sydow, Lars Passgard.

“Em Busca da Verdade” / “Sasom i en Spegel” é um dos grandes filmes de câmara de Ingmar Bergman, tendo na fotografia esse Mestre chamado Sven Nykvist. Durante décadas, esta obra foi vista como um dos tomos de uma trilogia do cineasta sobre o silêncio de Deus, sendo os outros dois filmes: “Luz de Inverno” / "Nattvardsgasterna" e “O Silêncio” / "Tystnaden". Na época muito se “meditou” sobre esta trilogia, depois de o cineasta ter escrito como nota explicativa à edição em livro do argumento dos três filmes o seguinte: “Esses três filmes são uma redução do processo narrativo. “Em Busca da Verdade” é um conhecimento conquistado. “Luz de Inverno”, um conhecimento revelado. “O Silêncio”, o silêncio de Deus, a impressão negativa. E é deste modo que estes três filmes formam uma trilogia.”. Porém, muitos anos depois (recorde-se que estas palavras são datadas de 1963), o cineasta não concorda com o termo de trilogia ou de ligação entre as três películas. E quando dizemos muitos anos depois, referimo-nos ao livro que ele escreveu nos anos noventa intitulado “Imagens”, onde faz a análise da sua obra cinematográfica, depois de ter passado um ano a rever a sua obra na íntegra, na sua Ilha de Färo na Suécia.


Como é possível ver no início de “Em Busca da Verdade” / "Sasom i en Spegel", este filme é dedicado à sua mulher Karin Laretei, uma pianista que lhe introduziu o gosto pela música de câmara, alvez por essa mesma razão tenha sido convocada para a banda sonora a Suite Nº 2 em Ré Menor para violoncelo solo de J. S. Bach, sendo também conhecida a admiração de Karin Laretei pela obra de Paul Hindemith. Ingmar Bergman introduz assim no seu universo cinematográfico um outro território musical.


Nesta obra de câmara, com uma fotografia esplendorosa de Sven Nykvist, sem um plano a mais ou um plano a menos, todo ele filmado na ilha de Färo, o primeiro de muitos filmes que ali iriam ter lugar, vamos encontrar um quarteto de actores de um nível extraordinário, sendo de destacar essa interpretação sublime de Harriet Andersson, a actriz que Ingmar Bergman revelou ao mundo em “Mónica e o Desejo” / "Sommaren med Monika", como muitos devem estar recordados.


Nas primeiras imagens é-nos oferecida essa visão do mar de que falou o poeta Dylan Thomas e como muitas vezes a bonança esconde a tempestade, assim sucede quando vimos ao longe as figuras dos protagonistas a nadarem nas ondas do mar. Tudo parece perfeito e mesmo quando eles chegam à praia, nenhum de nós suspeita que aquele mundo se encontra perfeitamente estilhaçado, resíduo imperfeito de memórias que o tempo irá transportar para o presente de uma forma trágica ou bendita, consoante queiramos interpretar a palavra de Deus.


Karin (Harriet Andersson) e Minus (Lars Passgard) partem para irem buscar leite, enquanto o pai deles (Gunnar Bjornstrand) e o marido de Karin (Max von Sydow) preparam o jantar. Logo aqui iremos descobrir que o marido da jovem Karin tem idade para ser pai dela, ao mesmo tempo que mantém uma relação muito estreita com o sogro. Por outro lado, de imediato, iremos perceber que aqueles irmãos vivem em mundos perfeitamente distintos, mas ambos perturbantes. Se Karin saiu recentemente de um hospital (aliás o marido é médico) e sofre de problemas de ordem psíquica, já Milus sente uma profunda ausência por parte do pai já que, embora presente, não há qualquer diálogo entre eles.


Ambos os irmãos têm uma relação aberta, mas complexa, devido à exuberância de Karin e à timidez de Milus (a descoberta da sexualidade ainda é um problema para ele), veja-se a forma como ela o beija logo no início do filme e a forma como ela o trata quando descobre a revista erótica. Em Milus ela irá procurar o prazer e o carinho, esse mesmo desejo que lhe é negado pelo marido, que a trata como se ela fosse sua filha e não sua mulher.


David é escritor de “best-sellers” e o seu trabalho criativo é a razão da sua existência, vivendo em profunda solidão, já que coloca um muro entre ele e os filhos, por outro lado usa acontecimentos ocorridos na sua vida para os introduzir na ficção de que é autor: a morte da esposa serviu como fonte de inspiração do seu maior sucesso e agora pretende utilizar a doença da filha como tema de um dos seus livros. Como todos os escritores, possui um diário e irá escrever nele que pretende estudar o comportamento de Karin, para o usar do ponto de vista literário, embora lamentando o facto de saber que essa doença é hereditária e incurável. Verificamos assim como a realidade serve a ficção, aliás o próprio Ingmar Bergman em “Imagens” confessa que essa tentativa de suicídio, cometida por David na Suiça, foi praticada pelo próprio cineasta e precisamente na Suiça, num dos momentos mais difíceis da sua vida.


Naquela casa todos têm os seus segredos e Karin termina por descobrir os do pai quando abre uma gaveta e encontra o diário onde ele escreve sobre a sua doença, essa doença que ela tanto deseja esquecer, mas aquelas palavras que acaba por ler vão levá-la a um retrocesso e conduzi-la ao sótão, a essa divisão abandonada onde habita a voz de Deus que chama por ela, essa voz de um Deus que a usa e depois a abandona para sempre. Serão essas vozes que a chamam através das paredes e o som do vento nas folhas das árvores, dessa floresta imaginária, que irão destruir o seu precário equilíbrio. O mundo está definitivamente perdido para ela e quando se refugia numa embarcação abandonada, irá encontrar no irmão o lugar que lhe foi sempre negado pelo marido.


Quando o pai e o marido chegam ao barco, debaixo de uma chuva torrencial, é tarde demais porque a doença regressou ao seu estado inicial e ninguém irá tentar compreender as razões do seu comportamento, o seu destino fica irremediavelmente traçado, tanto o marido como o pai nunca foram capazes de a amar e o amor entre os vivos é um sinal da presença de Deus no seu quotidiano. Será com a partida de Karin rumo ao purgatório da doença que, pela primeira vez, o pai fala com Minus e lhe explica como o amor que oferecemos aos outros e recebemos em troca é uma prova da existência de Deus e assim, naquele preciso momento, Minus apercebe-se que pela primeira vez o seu pai está a falar com ele através de todo o amor do mundo.


Como já referimos aqui, “Em Busca da Verdade” é uma das obras-primas de Ingmar Bergman e muito se deve à magia dessa grande actriz chamada Harriet Andersson, mas a terminar damos novamente a palavra ao cineasta: “O milagre está na actriz Harriet Andersson que faz o papel de Karin com uma musicalidade absoluta. Sem dificuldade nem constrangimento, ela desloca-se entre as realidades que lhe são atribuídas. Actua de uma forma pura, genial.”.

Ingmar Bergman

Nota: A filmografia de Ingmar Bergman encontra-se editada em DVD no nosso país, mas há também para os afortunados uma excelente edição da Criterium deste filme com o título de “Through a Glass Darkly”. Recorde-se que a editora norte-americana começou a ser editada em Zona 2 na Grã-Bretanha, tornando assim mais fácil o acesso a estas edições, apesar do Brexit.

Rui Luís Lima

1 comentário:

  1. Foi na película "Mónica e o Desejo" de Ingmar Bergman que o universo cinematográfico fixou o nome e o rosto e Harriet Andersson uma das naiores actrizes da costelação de mulheres do célebre cineasta sueco.

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