Conto
"O Olhar das Palavras!"
Quando Max Brod chegou ao café, reparou numa rapariga debruçada sobre uma mesa situada na zona mais escura da sala, escrevia algo em páginas soltas, mas a sua atenção rapidamente foi dirigida para alguém que amigavelmente lhe tocara no ombro. Era Franz acabado de chegar e com ele, Ottla, bela e sorridente. O chá foi servido e o tema da conversa surgida foi inevitavelmente Felice Bauer.
Franz Kafka
No entanto, o olhar de Max por vezes regressava à misteriosa dama, meio escondida no fundo do salão, até que uma carruagem parou em frente do café e duas crianças acompanhadas por uma senhora correram na direcção da dama misteriosa, e uma delas gritou mamã, enquanto a outra, agarrada às saias da mãe, sorria mostrando uma pequena boneca que segurava com a mão direita. Por fim, aquele quarteto abandonou o café e dirigiu-se para a carruagem que as aguardava.
Felice Bauer
Franz, que continuava a falar do seu amor com a irmã, não reparou que Max se tinha levantado e quando o viu a dirigir-se para o fundo do salão chamou por ele. Max Brod, num pequeno gesto quase invisível, apanhou a folha manuscrita caída junto da mesa, onde anteriormente se encontrava a misteriosa dama e dobrando com cuidado, guardou-a no bolso do casaco, regressando ao convívio dos amigos.
Ernest Weiss
Entretanto, Ernest Weiss juntou-se ao grupo e a animada conversa teve a sua continuação, mas Max estava desejoso de ler as palavras manuscritas, secretamente guardadas no casaco. E arranjando o pretexto de necessitar de comprar tabaco para o cachimbo, saiu do café e dirigiu-se para o outro lado da rua, caminhou em direcção ao jardim e sentou-se num banco escondido dos olhares alheios. O céu azul de Praga surgiu e ele, lentamente, iniciou a leitura do poema e assim o seu olhar foi percorrendo os caminhos criados pelas palavras, por vezes voltava atrás na leitura, porque nem sempre era fácil decifrar todos os versos, mas continuou, até que o sino da velha Catedral o despertou do universo onde tinha mergulhado.
Ottla Kafka
Regressado ao café, verificou que os amigos já tinham partido. Sorriu para si mesmo e seguiu para casa. Depois de jantar, sentou-se no sofá, onde se encontravam imensos escritos de Franz, ainda por ordenar, pegou neles e dirigindo-se até à secretária onde habitualmente trabalhava, deixou-os ali a repousar para, no dia seguinte, retomar o seu trabalho. Na verdade, o que lhe interessava naquele preciso momento, era olhar mais uma vez o universo das palavras do poema encontrado no chão do café. Analisou um a um os sentimentos que navegavam por esse rio de vocabulário, a caminho da foz do poema e, pela primeira vez, sentiu o impulso de, também ele, mergulhar na escrita dessas águas cristalinas, onde habita o silêncio da paisagem. E assim ele, o novelista e ensaísta, amador, acabou por escrever um poema.
Max Brod
Muitos anos depois, quando visitava o cemitério judaico onde Franz Kafka repousava, ao tirar o lenço do bolso, por causa das memórias surgidas, Max Brod deixou cair a carteira e, quando a apanhou do chão, reparou que aquela folha já amarelada pela passagem dos anos, com um poema escrito por uma desconhecida, ainda permanecia consigo.
Rui Luís Lima
Um conto em que se revisita Franz Kafka.
ResponderEliminar