David Lynch
“Inland Empire”
(EUA/Polónia – 2006) – (172 min. - P/B - Cor)
Laura Dern, Jeremy Irons, Justin Theroux,
Harry Dean Stanton, Diane Ladd, Julia Ormond.
“Tudo o que alguém alguma vez fez no mundo começou com uma ideia”
David Lynch
Cinco anos depois de “Mulholland Drive”, David Lynch surgia no Festival de Veneza com este “objecto artístico” chamado “Inland Empire”. De imediato as opiniões se dividiram sobre o produto nascida da câmara Sony PD150, estávamos perante o digital (que fez as delícias do Artista) embora nada tenha a ver com o digital de Michael Mann em “Miami Vice”, porque o de David Lynch é granuloso, por vezes límpido, por vezes sujo, como se a superfície fosse uma simples tela e o pintor a usasse apenas como suporte.
David Lynch realizou a sua primeira película, “Alphabet”, aos 26 anos e por detrás dela estavam as suas origens, precisamente a pintura. Se por um lado há no Artista a influência de Francis Bacon, na forma como por vezes nos retrata o corpo ou, melhor, partes do corpo, já esses corredores e escadas sem luminosidade, onde habita a escuridão envia-nos para uma certa fase de Edward Hopper (“Stairway” – 1906), aliás não será por acaso que, quando Nikki Grace (Laura Dern) entra na sala de cinema em “Inland Empire”, descobrimos o “NewYork Movie" (1939) de Edward Hopper, pintor anteriormente citado por Wim Wenders em “The End of Violence” / “Crimes Invisíveis”, através da sua obra mais famosa “Nighthawks.
“Inland Empire” surge assim como uma obra síntese de todo o universo do Artista, já que nele reencontramos não só os sons e o ambiente surrealista e claustrofóbico de ”Eraserhead”, da mesma forma que todos os seus filmes anteriores são citados das mais diversa formas, ou não fosse o sonho um dos territórios privilegiados do autor. Quando vimos William Macy, temos a sequência “limpa” e “perfeita” de “Twin Peaks” / ”Laura Palmer”, mais tarde invadida por esse mundo povoado de quartos de luminosidade reduzida com o vermelho escondido no “interior” do candeeiro, depois não temos William Dafoe em “Coração Selvagem” a segurar literalmente as tripas, mas um órgão a sair de um corpo ferido, enquanto registos sonoros próximos de “Blue Velvet” nascem quase sem pontuação, invadidos por esse território de sonoridades próprio de “Eraserhead”, ao mesmo tempo que essas letras douradas de Hollywood surgem na paisagem oriundas de “Mulholland Drive”.
Ora se “Mulholland Drive” nasceu da necessidade de “rentabilizar” o episódio piloto de uma série, recusada pela ABC, fruto de David Lynch e do produtor Alain Sarde, já este “Inland Empire” nasceu de um encontro do Artista com Laura Dern, em pleno passeio junto de sua casa, quando a actriz lhe comunicou que era a sua nova vizinha e que tinha saudades de fazer um filme com ele (ela é co-produtora de Inland Empire). Recorde-se que ela foi protagonista de “Coração Selvagem” / “Wild at Heart” e “Blue Velvet” e este “Inland Empire” começa com uma vizinha a bater à porta da estrela de cinema Nikki Grace (Laura Dern), apresentando-se como a sua nova vizinha e de imediato entramos num dos filmes deste “Inland Empire”, recorde-se que David Lynch filmava as sequências logo após as ter escrito ou imaginado, sem um argumento definido. Mas qual é a história?
Kingsley Stewart (Jeremy Irons) pretende fazer um novo filme, intitulado “On High in Blue Tomorrows” (sempre o azul), e convida Nikki Grace para interpretar a figura de Sue Blue, ao lado de Devon Berke (Justin Terroux), que irá ser Billy Side (reparem nos apelidos). Este filme tem um segredo, já que ele é um “remake” de um filme que não chegou a existir, porque os seus protagonistas foram assassinados, como acaba por confessar o produtor falido Freddie Howard (Harry Dean Stanton), surgindo assim com uma certa aura de maldito (tão cultivada por David Lynch ao longo da sua carreira). Iremos assim ver os preparativos do filme com leituras de diálogos no “set”, onde é introduzida uma personagem que irá assombrar a película e as suas filmagens… e as inevitáveis entrevistas na televisão no “talk show” de Marilyn Levens (Diane Ladd - na vida real mãe de Laura Dern) e aqui temos a mordacidade de David Lynch, ao mesmo tempo que as “sitcom” são “retratadas” através desses três coelhinhos, primos do coelho de Alice, repare-se como escutamos as gargalhadas do público, só que o país deles não é das maravilhas, mas muito mais tenebroso, o dos pesadelos… até surgir esse momento em que Laura Dern encontra essa porta de entrada/saída…
Poderíamos dizer que é tudo uma questão de luz, como refere o realizador Kingsley Stewart, quando pretende que o operador coloque a luz um pouco mais abaixo e uma voz (de David Lynch) vai respondendo… o objectivo central não será encontrado, como neste filme o fulcro da história só será encontrado quando o cineasta grita “corta!” e o filme termina, mas neste filme nada está terminado, porque nele habitam vários filmes, como iremos descobrindo ao longo do tempo. Após ter abandonado o “set”, Nikki Grace entra na sala de cinema e descobre que a sua imagem continua a ser projectada no écran, ela permanece no filme, passando da tela para a caixa que mudou o mundo, num outro lugar olhado por uma outra espectadora que não ela… residindo aqui a questão da identidade, ou seja quantas personagens interpreta Nikki Grace?
Para além de Sue Blue, ela habita o corpo de um outro pesadelo Kafkiano, vindo do além? Ou bem presente nesse passeio da fama de Hollywood, que David Lynch abomina de forma encantada como o “maverick” que pretende ser? Só a morte poderá oferecer um lugar na História, como diria essa estrela de apenas um filme e de uma revista célebre, chamada Dorothy Stratten.
Do outro lado da fama, nessa cidade chamada dos anjos, habitam outros anjos e demónios que fazem da noite o seu território de predadores. No final, o passado funde-se com o presente esquecido do futuro, porque o dia de ontem pode ser o dia de amanhã como diz a vizinha de Nikki no início de “Inland Empire”.
David Lynch
(1946 - 2025)
Esta obra de David Lynch deveria ser projectada em sessões contínuas sem interrupção, possibilitando ao espectador a sua entrada e saída da sala, para beber o café orgânico do Artista e fumar o inevitável cigarro, navegando no seu interior como se fosse o fantasma confessor de todas as personagens convocadas para essa Mansão, chamada cinema ou então passar de forma ininterrupta no nosso leitor de dvd ao longo de um fim-de-semana, para irmos vendo de acordo com a disponibilidade de cada um.
David Lynch já nos deixou, mas o seu cinema permanece bem vivo no interior de todos os que amam a Sétima Arte e este Cineasta genial!
Rui Luís Lima
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