sábado, 4 de janeiro de 2025

Nuno Júdice - “O Estado dos Campos”


Nuno Júdice
“O Estado dos Campos”
Páginas: 154
Dom Quixote

Foi na década de setenta, do século xx, que descobri a poesia de Nuno Júdice, na colecção “Cadernos de Poesia” das Publicações D. Quixote, tratava-se precisamente do seu primeiro livro de poemas intitulado “A Noção de Poema” e desde então tornei-me um leitor fiel da sua obra poética como da restante obra em prosa e teatro, recordo-me do magnífico “Última Palavra: «Sim»” saído nas edições & Etc, ou o fabuloso “Plancton” na editora Contexto.

Nuno Júdice nasceu para o universo público nas páginas do Diário de Lisboa em 1967, onde outros nomes da mesma geração, hoje consagrados, ofereceram os seus primeiros trabalhos poéticos. Mantendo intensa actividade crítica com inúmeros ensaios publicados em jornais e revistas, o poeta mantém uma regularidade e uma qualidade poética que merecem ser referidos, onde a Literatura é uma constante presença através da sua História, mas também através das inúmeras referências românticas, que servem tantas vezes de ponto de partida para poemas que se guardam na memória com enorme carinho. Aqui vos deixo o meu poema favorito da obra “O Estado dos Campos”, saído em 2003.

Rui Luís Lima

Nuno Júdice
(1949 - 2024)

Retrato de Mulher à Luz da Tarde

O poeta épico e o poeta dramático, disse
Goethe, estão submetidos às mesmas leis gerais. No
entanto, se cada um deles conduz o poema
até ao seu desfecho sem uma hesitação,
ou antes, limitando a dúvida ao que se passa
no espírito quando o amor, com a sua certeira
seta, o fere, já as palavras são diversas. Não é o mesmo
descrever a emoção com as imagens que ela sugere,
ou transformá-la num discurso lógico, que obriga
quem o faz a utilizar o raciocínio, deixando
para depois o sentimento. A construção é o mais
simples, neste processo, desde que o princípio
corresponda à verdade que faz parte da vida
de quem ama. O difícil é transpor a ponte
que nos conduz ao outro: refiro-me a ti, que
me esperas desse lado, por trás das árvores
e das flores do jardim, com o sol a iluminar-te
o rosto. É uma imagem simples: retrato
de mulher à luz da tarde. Mas sinto-me obrigado
a dar uma outra dimensão à figura humana,
puxando-a para o convívio da minha alma. Aí
as coisas ganham a profundidade de uma relação
abstracta, despida dos aspectos materiais, e
dos obstáculos que a realidade nos coloca. A
perfeição nasce das frases que o verso trabalha, com
o ritmo de uma respiração serena. Por fim, a
imagem adquire uma beleza própria, que foge
à própria fonte. E ao vê-la, pergunto: ainda és tu? Ou
foste roubada a ti própria por esta luz com que o poema
te envolve? Mas deixo-me de questões teóricas - e
atravesso a ponte, deixando para trás imagens e
discursos. É que do outro lado as leis gerais não
contam, e são-me indiferentes os problemas que se
colocam ao poeta, épico ou dramático. Puxo-te
pela mão - e saímos da moldura, para dentro da vida.

Nuno Júdice
in "O Estado dos Campos"

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