sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Akira Kurosawa - "Kagemuscha - A Sombra do Guerreiro" / "Kagemuscha"


Akira Kurosawa
"Kagemuscha - A Sombra do Guerreiro" / "Kagemuscha"
(Japão– 1980) – (179 min. / Cor)
Tatsuya Nakadai, Tsutoma Yamazaki, Kenichi Hgiwara, Jinpachi Neza, Hideji Otaki.

Akira Kurosawa é, sem qualquer margem de dúvidas, um dos maiores cineastas japoneses e mundiais mas, no entanto, no último quarto de século da sua carreira cinematográfica, em que nos ofereceu diversas obras-primas como “Dersu Uzala – A Águia das Estepes”, “Kagemusha -A Sombra do Guerreiro”, “Ran – Os Senhores da Guerra” e “Sonhos de Akira Kurosawa”, a sua Arte esteve sempre dependente do auxílio financeiro do Ocidente, em virtude de na sua pátria o seu valor já não ser reconhecido pelas novas gerações. E basta olhar para este quarteto fabuloso de obras-primas acima referidas e depois meditar na sua difícil gestação, que levou nada menos que duas décadas.

Mas regressemos um pouco atrás na carreira deste cineasta japonês que, em tempos idos, viu o seu génio reconhecido por todos e mais tarde caiu no esquecimento, aliás recordo-me de ter visto um doloroso documentário, no saudoso “Artes e Letras” do Canal 2 da RTP, em que encontrávamos o cineasta nos últimos anos da sua vida a habitar em casa da filha, fazendo por vezes pequenos anúncios de whisky para a televisão, a fim de sobreviver. Na época, ao ver essas imagens, foi inevitável pensar em D. W. Griffith, a viver num quarto de hotel em Hollywood, esquecido por todos e Georges Méliès, no final da vida, a vender brinquedos no pequeno estabelecimento de que era proprietário, numa estação de comboios.


Foi durante a Segunda Grande Guerra que Akira Kurosawa se iniciou na profissão com “A Lenda de Judo” / “Sugata Sanchiro”, introduzindo a sua marca nas películas que realizava, abordando tanto os filmes de samurais num Japão medieval e feudal, como obras mais intimistas e contemporâneas, oferecendo-nos sempre um olhar profundamente interventivo. Porém, ao realizar “Rashomon” / “As Portas do Inferno”, a sua genialidade foi reconhecida por todos e um dia até uma das suas obras-primas, “Os Sete Samurais” / “Sichinin no Samurai”, viu a América fazer um “remake” intitulado “Os Sete Magníficos” / “The Magnificent Seven”, pela mão do hoje esquecido John Sturges.

Quando chegam os anos setenta (do século xx), a Nova Vaga Japonesa começa a dar cartas e Akira Kurosawa sente que o seu tempo se extinguiu, tal como sucedia com a vida de muitas das personagens dos seus filmes. Após realizar “Dosdekaden” / “Pouca Terra, Pouca Terra”, em 1970, vê nascer a indiferença dos seus contemporâneos perante este filme, cujas receitas mal deram para cobrir os custos, revelando-se um enorme fracasso. E, como não podia deixar de ser, Akira Kurosawa não resistiu à indiferença a que fora votado no seu país e tentou suicidar-se, mas felizmente a vida ainda estava do seu lado e ele, quatro anos depois, iria assinar uma das obras mais belas de toda a História do Cinema, filmando na então União Soviética essa obra-prima intitulada “Dersu Uzala” / “Dersu Uzala – A Águia das Estepes” que, como alguns devem estar recordados, teve estreia comercial entre nós no cinema Apolo 70 (hoje desaparecido) e que recentemente regressou à circulação comercial em cópia nova, o que é sempre de saudar.


E com “Dersu Uzala” (já editado em dvd no nosso país), chegou o reconhecimento internacional, com a atribuição do respectivo Oscar da Academia de Hollywood, oferecendo desta forma um novo fôlego à carreira cinematográfica do Grande Mestre Japonês. O qual, em vinte anos, irá realizar quatro obras-primas absolutas, como já referimos anteriormente.

“Kagemusha – A Sombra do Guerreiro” / “Kagemusha”, só foi possível graças aos bons ofícios (leia-se financiamento) de dois admiradores americanos, chamados George Lucas e Francis Ford Coppola. Mais uma vez Akira Kurosawa decide regressar a essa época em que o Japão se encontrava dividido em clãs, que lutavam entre si e onde o desejo de unificação se encontrava presente mas sempre distante, devido às rivalidades existentes entre as diversas famílias.


Estamos assim em pleno século XVI, mais concretamente em 1570 e, como se estivéssemos perante uma peça shakespeariana, vamos encontrar no início do filme três personagens a dialogar num pequeno espaço interior, num longo plano sequência em que iremos lentamente descobrir as razões daquele encontro.

Ali estão o célebre samurai Shingen Takeda (Tatsuya Nakadai), o seu irmão Nobukado Takeda (Tsutoma Yamazaki), que durante largos anos foi seu duplo e o substituiu na frente de batalha mas que, com o passar dos anos, foi perdendo a semelhança com ele e um ladrão que foi resgatado da forca, porque é um verdadeiro duplo do Senhor da Guerra.

Fica então decidido que ele será o seu novo duplo, passando a viver no Palácio, mas Shingen Takeda não resiste um dia a ir à frente de batalha e fica gravemente ferido, terminando por morrer sendo assim substituído pela sua sombra, mas o ladrão por vezes leva longe demais o seu esforço e embora só os generais e os seus criados conheçam a sua verdadeira identidade, ele irá cometer pequenos erros ao longo do desempenho do seu novo papel.


Ao surgir perante as tropas a cavalo, incitando ao orgulho das suas forças, termina por cair longe do olhar de todos, depois será o seu neto a não reconhecer o avô, embora ele consiga com a sua paciência ludibriar a criança, conquistando a sua confiança e afecto, adorando este o seu novo avô, tão mudado que ele estava. Para mais tarde uma das suas mulheres descobrir que a sua célebre cicatriz, fruto de uma batalha, tinha desaparecido.

Durante três anos ele consegue personificar o guerreiro de forma assombrosa, levando a cabo a sua missão mas, quando a noite chega, os pesadelos tomam conta de si e o medo, que se vai apossando dele, irão conduzir à sua perdição.

Descoberto o seu papel de sósia é expulso do Palácio, perante a indiferença dos generais, que o usaram durante aqueles três anos cruciais e será só e abandonado, no campo de batalha, que ele irá assistir à derrota do clã Takeda, cujo novo Senhor, Katsuyori Takeda, irá lançar as suas tropas contra os seus inimigos que o cercaram, usando as antigas tácticas de guerra, que serão derrotadas pela nova estratégia do inimigo e pela introdução das armas de fogo.


Akira Kurosawa apresenta-nos, nesta obra-prima, momentos de profunda sedução, como se estivéssemos perante um pintor, que nos vai retratando na sua tela as diversas fases da batalha final, usando, como só ele sabia, a intensidade da cor e da luz.

Nessa famosa derradeira batalha, o cineasta não nos oferece o embate dos dois exércitos, mas vai-nos dando a visão que cada um deles tem do outro: vimos as espingardas a disparar e só depois a cavalaria a ser dizimada; a infantaria ataca e vimos o seu massacre pelo olhar abismado do clã Takeda, para só depois encontrarmos o campo de batalha pejado de corpos ensanguentados; assistimos a um derradeiro ataque da cavalaria e Akira Kurosawa oferece-nos de novo o olhar mortífero dessa máquina de guerra nascida da descoberta da pólvora, para depois nos transmitir esse momento majestoso e digno em que encontramos no campo de batalha os corpos dos guerreiros mortalmente feridos a darem o seu último suspiro, ao mesmo tempo que descobrimos como a dor mortífera atingiu os animais que os transportavam para o embate final. As imagens dos cavalos feridos, caídos no campo de batalha, esse território tingido literalmente de sangue pelo pintor Akira Kurosawa, são de uma beleza transcendental.

“Kagemusha – A Sombra do Guerreiro” surge assim como uma das obras mais belas de toda a filmografia de Akira Kurosawa, que aqui regressou a um dos seus temas favoritos: o Japão medieval ou o nascimento de uma nação.


No seu filme seguinte “Ran – Os Senhores da Guerra”, onde de certa forma “King Lear” é revisitado, ou seja William Shakespeare permanece presente, Akira Kurosawa irá atingir novamente o sublime nas sequências das diversas batalhas, oferecendo-nos a sua visão de pintor, através da cor das armaduras dos diversos oponentes, ao mesmo tempo que retira o som natural da batalha, sendo o confronto pontuado por música sinfónica de uma beleza estonteante.

E como falámos aqui de Akira Kurosawa como pintor, nunca é demais deixar o convite para reverem esse episódio de “Sonhos de Akira Kurosawa”, em que o turista japonês, que admira os quadros de Van Gogh, acaba por se encontrar no interior da tela, percorrendo a paisagem criada pelo artista, num dos momentos mais mágicos de toda a História do Cinema.

Rui Luís Lima

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