“Cai a Noite Sobre a Cidade” / “Un Flic”
(França – 1972) – (99 min. / Cor)
Alain Delon, Catherine Deneuve, Richard Crenna,
Ricardo Cucciolla, Henry Marteau, Jean Desailly.
Ao olharmos para o elenco de “Un Flic” / “Cai a Noite Sobre a Cidade”, deparamos com um nome que, à primeira vista, parece pertencer a um erro de “casting”, referimo-nos ao actor norte-americano Richard Crenna, no entanto ele surge como referência ao “film noir”, tão amado por Jean-Pierre Melville. Temos assim aquele que, anos mais tarde, irá interpretar o superior hierárquico de John Rambo a surgir na figura de Simon, o gangster cerebral e minucioso. Muitos dirão que também se recordam dele como marido da “Femme Fatale/Kathleen Turner” em “Body Heat” / ”Noites Escaldantes” de Lawrence Kasdan..
Mas será que esta crónica não deveria ter começado a ser escrita falando de Alain Delon, aqui a representar o polícia e não o ladrão? A resposta é simples, Jean-Pierre Melville sempre colocou no mesmo plano polícias e ladrões no que diz respeito a métodos, já que no que diz respeito a moral, a superioridade dos gangsters é por vezes mais elevada que a dos “flics”.
Ora Alain Delon a vestir a pele de “un flic” é isso mesmo, um polícia com métodos muito pouco ortodoxos, repare-se que ele ao longo do filme não olha a meios para atingir os fins: a forma como se relaciona com o travesti enquanto necessita dele como informador e depois a violência que exerce sobre ele, tanto física como psicológica; para já não falar do gesto frio e rápido como deixa Paul (Ricardo Cucciolla) suicidar-se, ou a forma como usa Cathy (Catherine Deneuve), porque o destino dela será o do esquecimento, disso não tenham dúvida.
“Cai a Noite Sobre a Cidade”, o título adoptado pela distribuidora do filme, surge como uma espécie de homenagem ao “film noir” ou será que a censura achou o título “Um Chui” demasiado subversivo para a época, recorde-se que o filme se estreou em Portugal em Abril de 1973, ou seja ainda faltava um ano para deixarmos de ver os filmes sem cortes, embora por vezes sejam exibidos uns filmes com “saltos”, a bem da nação, mas isso já é outra história, como diria o barman de “Chez Moustache”, no “Irma, La Douce” de Billy Wilder...
Regressando a “Un Flic”, vamos encontrar logo no início da película uma lição bem aprendida de como filmar um policial, já que toda a acção nos é apresentada em tempo real: chove abundantemente e um carro com quatro passageiros pára naquele fim de tarde, numa rua. Assiste-se então à forma metódica como preparam o assalto à dependência bancária, a forma simples como se introduzem um a um como clientes, para depois quando chega a hora do encerramento darem início ao roubo; tudo irá correr bem até ao momento em que um dos empregados decide ser herói, pagando com a vida o seu gesto inútil.
Os dados do cinema de Melville estão lançados nesta portentosa sequência, quase sem diálogos, porque a acção não precisa de palavras. Por outro lado, vamos assistindo ao deambular pelas ruas de Paris do Inspector Edouard Coleman (Alain Delon), que mais tarde se irá cruzar com o líder do grupo, o eficiente Simon (Richard Crenna), que elaborara este assalto para preparar um golpe mais ambicioso: roubar o correio da Máfia que transporta cocaína nas malas.
Se o inspector Coleman (Alain Delon, mais uma vez brilhante) pretende deslindar o caso do assalto ao banco, já Simon (Richard Crenna) prepara o golpe da sua vida, percorrendo ambos estradas diferentes até que a “maldita encruzilhada da vida” os coloca em lados opostos e desta vez quem ganha não é a personagem com quem se simpatiza, mas sim o “flic”.
Curioso que desta feita Jean-Pierre Melville oferece a Richard Crenna uma morte idêntica à de Alain Delon em “O Samurai”, ambos se encontram desarmados e simulam a existência da arma para morrerem às mãos da polícia, ou seja a moral do gangster permanece no interior do cinema de Melville como ele tão bem nos ensinou através desse outro gangster, “fora-de-moda”, chamado “Gu” ou melhor o Lino Ventura de “O Segundo Fôlego”.
Duas referências a terminar: a espectacular interpretação próxima do “cameo” feita por Jean Desailly, recorde-se que ele é o espantoso protagonista de “Angustia” / “La Peau Douce” de François Truffaut e a presença de Catherine Deneuve, numa interpretação bem diferente do que nos habituou.
“Un Flic” demonstra, mais uma vez, que o policial moderno deve muito à magia do cinema de Jean-Pierre Melville. Este é, sem dúvida alguma, um filme que é urgente descobrir.
Rui Luís Lima
Sem comentários:
Enviar um comentário