segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Mikio Naruse - "Quando Uma Mulher Sobe as Escadas" / "Onna Kaidan O Agaru Toki"


Mikio Naruse
"Quando Uma Mulher Sobe as Escadas" / "Onna Kaidan O Agaru Toki"
(Japão – 1960) – (110 min. - P/B)
Hideko Takamine, Masayuki Mori, Daisuke Kato,
Tatsuya Nakadal, Reiko Dan, Keiko Awazi.

Quando se fala em cinema clássico japonês, de imediato surgem três nomes: Kenji Mizoguchi, Akira Kurosawa e Yasujiro Ozu. Se os dois primeiros viram alguns dos seus filmes estreados comercialmente em Portugal, já Yasujiro Ozu, um dos mestres orientais mais idolatrados no Ocidente (recorde-se essa obra chave do cineasta Paul Schrader, dedicada a Bresson, Ozu e Dreyer), apenas muito tardiamente foi revelado no nosso país, recorde-se que “Primavera Tardia” / “Banshun” só estreou comercialmente em 1995 e na época dessa estreia surgiu um outro cineasta japonês até então muito pouco conhecido entre nós, mas idolatrado em França, de seu nome Mikio Naruse, estávamos em Setembro de 1995 e todos aqueles que viram o filme, em formato scope, no Cinema Nimas, embora filmado de forma intimista num denso preto e branco, ficaram profundamente fascinados por esta película.


Mikio Naruse iniciou-se na profissão como assistente de realização, nos Estúdios da Shochiku, tendo em Yasujiro Shimzv o seu Mestre e professor, seguindo sempre os seus conselhos. Desde o início dos anos trinta até ao final da sua carreira, Mikio Naruse assinou “apenas” noventa filmes, dentro do sistema de produção dos Estúdios Japoneses, sendo “Quando Uma Mulher Sobe as Escadas” / “Onna Ga Kaidan O Agaru Toki” já rodado no célebre Estudio Toho. O cineasta sempre se interessou pela gente comum e as suas pequenas histórias do quotidiano, contribuindo desta forma para o estatuto de autor no interior do cinema japonês, mas nada melhor como lhe dar a palavra: “passa-se pouca coisa nos meus filmes, terminam sem se concluírem, como a vida. Não posso deixar de sentir um grande amor pela perseverança dos seres humanos, pela maneira como conduzem as suas vidas no espaço e no tempo sem fim”. Cinco anos depois de ter feito esta afirmação, Mikio Naruse realizou essa obra-prima intitulada “Quando Uma Mulher Sobe as Escadas” (o título português segue o inglês “When a Woman Ascends the Stairs”), aplicando o seu pensamento às diversas personagens da película, oferecendo a todas elas o seu amor.


Tal como sucedia na obra derradeira de Kenji Mizoguchi, “A Rua da Vergonha” / “Akasen Chitai”, que também tivemos oportunidade de ver na mesma sala de cinema, o filme de Mikio Naruse retrata-nos a vida nocturna nos bares japoneses e das pessoas que neles habitam. E aqui surge já o estilo do cineasta, apresentando-nos a história de uma mulher, viúva, que dirige um desses bares, trata-se de Keiko (a inesquecível Hideko Takamine), será assim na noite do bairro de Ginza que a iremos encontrar dirigindo as raparigas que a tratam por Mamã, cumprimentando os clientes, fazendo tudo para o responsável do bar não se arrepender de a ter contratado.


Ela começa o seu dia de trabalho quando as outras mulheres vão para casa para junto dos maridos e dos filhos, já ela, como família, só tem a mãe que está sempre à espera da sua ajuda económica, tal como o irmão mais novo e o seu filho doente.


Keiko Yshiro, ao longo da sua vida, foi obrigada a gerir o dinheiro ganho, porque terá sempre de sustentar duas casas, comprando quimonos de tons escuros para os poder usar de dia e de noite, escondendo a sua profissão, por outro lado o seu desejo de ter um bar só para si revela-se interdito, porque os possíveis financiadores estão mais interessados no seu corpo e ela até ama um homem, um empresário infelizmente casado e cliente do bar, depois será o encontro com um outro homem, também seu cliente que lhe irá abrir as portas do seu coração para o amor, mas as aparências por vezes iludem e quando ela descobre o mundo de mentiras a que ele pertence, sente-se perdida porque, quando uma mulher sobe as escadas, encontra tantos obstáculos pelo caminho, que acaba por desistir.


Mikio Naruse oferece-nos assim uma visão profundamente feminina da mulher, em todo o seu intimismo e amor, sendo perfeito o cognome de cineasta das mulheres, tal é a forma como ele dirige essa grande actriz extraordinária chamada Hideko Takamine, uma das grandes senhoras do cinema japonês, recorde-se que só são conhecidas as suas interpretações depois da guerra, devido aos bombardeamentos americanos terem destruído os Estúdios Japoneses, por outro lado ela é considerada a Katherine Hepburn japonesa, não só pelo seu talento, mas também pelo brilhantismo que oferece às personagens que interpreta, para além dessa beleza tranquila que o seu olhar sedutor transporta consigo.

Convém referir que Hideko Takamine se iniciou no cinema ainda na época do mudo, com apenas cinco anos, em 1929, sendo comparada mais tarde a Shirley Temple, quando a pequena actriz americana surgiu nos écrans japoneses. Depois tornou-se numa estrela, tão grande como as do Ocidente, ela era para todos “a rapariga da porta ao lado” ou “a namorada do Japão”, recorde-se que os soldados japoneses durante a guerra, quando partiam para a frente de combate, levavam com eles a sua fotografia.


Basta olharmos para a beleza que nos é oferecida por essa mulher de meia-idade no filme de Mikio Naruse, para entendermos a forma como o cineasta decidiu homenagear a mulher em “Quando Uma Mulher Sobe as Escadas” / “Onna Ga Kaidan O Agaru Toki”, através de uma personagem cuja idade ronda os 35/40 anos lutando para sobreviver com um sorriso no interior da noite, no exterior da vida.


Uma última palavra para a música envolvente de Toshirô Mayuzumi que, baseando-se quase sempre em dois instrumentos, piano e vibrafone, por vezes acompanhados por uma secção de cordas, nos oferece uma música profundamente sensual e intimista, muito próxima daquela que muitos anos mais tarde nos irá ser oferecida pela dupla Chick Corea e Gary Burton nos trabalhos “Crystal Silence” e “Lyric Suite For Sextext”. E estamos aqui perante um aspecto profundamente importante, porque será através da banda sonora que Mikio Naruse nos irá oferecer a pontuação da sua escrita intimista, tanto na forma como filma os personagens, como na maneira como nos oferece esse momento de beleza em que Keiko Yshiro (Hideko Takamine) sobe as escadas para se dirigir ao bar onde trabalha, metáfora perfeita desse seu desejo de subir as escadas da vida, em busca de outra paisagem, em busca da felicidade.

Rui Luís Lima

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