domingo, 15 de setembro de 2024

Salas de Cinema - "Jardim Cinema"


Salas de Cinema - "Jardim Cinema"

Foi num cinema de Bairro que vi uma curta-metragem de Lauro António intitulada “Vamos ao Nimas” e nela era-nos dado a conhecer esse ambiente tão característico do chamado Cinema de Bairro, que oferecia quase sempre dois filmes numa sessão.

Muitos desses filmes vinham num prolongamento ou continuação de estreia, após terem feito a sua passagem pelas salas de estreia da capital, muitas delas na época verdadeiras catedrais cinematográficas, como sucedia com o Monumental, o Tivoli e o Império, só para citar algumas.

Jardim Cinema
(O célebre Palhinhas!)

Morando eu na zona de S. Bento, tinha três salas que frequentava com regularidade: o Paris (já desaparecido), o Cinearte (hoje sala de Teatro) e o célebre Jardim Cinema (hoje em dia mais uma dessas lojas intituladas de "megastore"). E digo célebre porque ele tinha no interior um magnifico Salão de Jogos, com os seus bilhares, matraquilhos, entre outros jogos, nunca esquecendo a célebre pista de mini-carros onde se participava em verdadeiras competições, com a célebre moeda de vinte e cinco tostões. Eram 60 voltas com inúmeros despistes, chegando até muitos de nós a levar os seus próprios bólides, “religiosamente” tratados para essas fabulosas corridas, como fazia um primo meu.

Planta da sala do Jardim Cinema
Anos 60/70/80 do século XX

No entanto era o Cinema o meu principal ponto de interesse e aquela sala tinha um verdadeiro predicado, porque a maioria dos lugares eram compostas por cadeiras de palha, as famosas palhinhas que na época custavam quatro a cinco escudos, existindo mais atrás uma outra zona onde se situavam as então denominadas poltronas (as cadeiras habituais nas salas de espectáculo) a seis escudos.

A sala era grande e possuía dois bares, um do lado direito quando se entrava na sala e o outro por debaixo da sala, muito mais extenso. E foram muitas as tardes em que eu entrava para a sessão das três horas e saía feliz às sete da noite, sempre maravilhado com os filmes que ía descobrindo. É claro que nessa época ainda não fixava o nome dos realizadores, mas sim dos actores e como sempre fui bastante alto, lá passava aos oito anos, sozinho ou acompanhado pelo meio da multidão para ver os filmes para maiores de 12 anos.

O meu primeiro James Bond em que fixei
o nome e as curvas de Ursula Andress.
("Agente Secreto 007" - Terence Young)

Geralmente o nosso destino eram as poltronas, mas quando se gastava mais uma moeda nas corridas de carros, as célebres palhinhas esperavam por nós, até esse dia em que descobrimos que havia umas poltronas mais perto do écran, intituladas plano A, que passaram a fazer as nossas delícias.

Mas esta índia que até era sueca e se chamava
Camilla Sparv ficou para sempre na minha memória.
("O Ouro de Mackenna" - J. Lee Thompson)

Por vezes a fita partia-se e de imediato se ouvia burburinho na plateia, dirigido ao pobre projeccionista, mas o pior foi nesse dia em que estávamos todos agarrados a um policial, em que o herói estava sentado no avião e de súbito o célebre “mau da fita” saiu da casa de banho do avião de pistola em punho, dirigindo-se ao detective… e no écran surge a palavra intervalo!

A descoberta de François Truffaut e Ray Bradbury.
("451º Fahrenheit" - François Truffaut)

Foi uma verdadeira revolta na “Bounty” no interior da sala e nós caladinhos, só não queríamos dar nas vistas, para vermos em paz o filme seguinte que era um desses “western” que fazia as nossas delícias, o que conseguimos, depois dos ânimos serenarem.

Um roubo quase perfeito, com um final inesquecível,
mas nessa época nem os actores conhecíamos:-)
("Um Roubo no Hipódromo" - Stanley Kubrick)

Mas se me perguntarem qual a película que mais me marcou nesta sala verdadeira mágica, ele foi o filme de François Truffaut intitulado “Fahrenheit 451”. Tinha na época nove anos e aquela história onde os livros eram proibidos ficou-me na memória para sempre. Recordo-me que regressei a casa a meditar no assunto, eu que adorava livros e tinha a casa repleta de livros, nunca iria querer viver naquela sociedade e comecei a pensar qual o homem livro que iria desejar ser e rapidamente escolhi “Um Dia Diferente” do John Steinbeck, um livro que a minha mãe tinha comprado em edição da Bertrand, que ainda mora na minha companhia, um livro que John Steinbeck escreveu para oferecer aos personagens do seu livro “Bairro da Lata” uma personagem feminina e lhes proporcionar uma nova vida. O cineasta/argumentista David Ward, irá levar ao cinema estes dois livros num único filme, através de um excelente argumento cinematográfico.

O meu primeiro Woody Allen, em pleno Verão quente,
que nos divertiu imenso.
("Bananas" - Woody Allen)

Dos actores que surgiam no filme de François Truffaut, “Fahrenheit 451”, só conhecia a Julie Christie que para mim, nessa época, representava a personificação de beleza, depois de a ter visto semanas antes no Cinema Monumental no “Longe da Multidão” / “Far From the Madding Crowd”.

O facto de a Julie Christie, no filme, interpretar duas personagens surpreendeu-me no início, mas depois percebi a versatilidade da actriz.

Anna Karina já era uma das minhas musas,
mas nesse ano de brasa houve um tumulto no bar
do Jardim Cinema contra a Igreja, no intervalo da sessão.
("A Religiosa" - Jacques Rivette)

Muitos anos depois, “Fahrenheit 451” (adaptação ao cinema do famoso livro de Ray Bradbury) permanece um dos meus filmes preferidos do François Truffaut.

E, com o passar dos anos, o Jardim Cinema passou a chamar-se Monte Carlo e as palhinhas desapareceram levando consigo as sessões de dois filmes, mais tarde o cinema partiu definitivamente e o Jardim Cinema passou a sala de espectáculos, mas já nada era como dantes. E mesmo quando ali assisti a um concerto da Suzanne Vega ainda no seu início de carreira, ao escutar as suas canções só me lembrava desses tempos em que se vivia o cinema como se ele fosse a mais bela e maravilhosa aventura de sempre. Hoje o extinto Jardim Cinema é mais uma dessas megastores que habitam Lisboa.

Rui Luís Lima

1 comentário:

  1. O "Jardim Cinema" era um cinema de bairro situado na Avenida Pedro Álvares Cabral, que exibia sempre dois filmes por sessão e ficou conhecido como o palhinhas em virtude de muitas das suas cadeiras na plateia serem de palha, depois tinha as poltronas, lugares iguais ao que existiam nas outras salas, os filmes de estreia passavam semanas mais tarde nessa sala, assim como películas mais antigas. Era uma das minhas salas favoritas. Mais tarde foi remodelado e passou a chamar-se Monte Carlo. Depois passou a estúdio de televisão e até sala de espectáculos, por fimo seu espaço /tinha um salão de jogos célebre na época) transformou-se numa loja chinesa. A película "A Cidade Branca" de Alan Tanner homenageou o espaço, surgindo no célebre filme que tinha Lisba como ex-libris.

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