quinta-feira, 18 de julho de 2024

Jean-Luc Godard - "Viver a Sua Vida" / "Vivre Sa Vie"


Jean-Luc Godard
"Viver a Sua Vida" / "Vivre Sa Vie"
(França – 1962) – (82 min. - P/B)
Anna Karina, Sady Rebbot, André S. Labarthe, Brice Parain.

A melhor maneira de se falar de “Viver a Sua Vida” / “Vivre Sa Vie” é olhar a imagem do rosto de Anna Karina, esse rosto à beira do abismo ou melhor esse olhar repleto de lágrimas prontas para navegar no seu rosto. E nunca um olhar no cinema perturbou tanto o espectador, a história da vida de Nana está contida nesse olhar. Na época, Jean-Luc Godard filmava a mulher da sua vida, Anna Karina e ela em troca oferecia-lhe a sua alma. Deixem este texto por momentos e voltem a olhar o rosto de Anna Karina, nele descobrimos todos os sentimentos do mundo, nele poderemos ler a história de uma vida e por fim somos obrigados a tentar saber o que está do outro lado do écran para provocar tamanha dor ao mais belo rosto da História do Cinema.


E a resposta surge muda, vinda do outro lado numa imagem repleta de amor e terror, do outro lado do écran, temos um outro écran e um outro rosto, o rosto inesquecível de Falconetti, a “Joana D’Arc” de Carl Dreyer e descobrimos um rio de lágrimas correndo pelas margens, ao mesmo tempo que reflecte o rosto das duas almas, em toda a sua candura.


Nunca um cineasta amou tanto uma mulher como Jean-Luc Godard o fez em “Viver a Sua Vida” / “Vivre Sa Vie” e no entanto não estamos perante o primeiro filme do casal, mas sim o terceiro capítulo de um maravilhoso romance. “O Soldado das Sombras” / “Le Petit Soldat” e “Uma Mulher é Uma Mulher” / “Une Femme est Une Femme” representam os primeiros encontros entre Jean-Luc Godard e Anna Karina e será num encontro de café que se irá iniciar “Viver a Sua Vida” / “Vivre sa Vie”, estamos num dos muitos “bistrot” de Paris e ao balcão, de costas viradas para nós, Nana (Anna Karina) e Paul (André S. Labarthe) conversam um com o outro, no primeiro de doze quadros que compõem a película. A câmara acompanha o diálogo usando o travelling e lentamente vamos descobrindo o rosto de Anna Karina no espelho situado por detrás do balcão.


Começamos então a ficar apaixonados por esta Nana que trabalha numa discoteca, na idade de ouro do vinil e luta com problemas de dinheiro, sendo até impedida de entrar em casa pela porteira em virtude de ter a renda por pagar. Mas se Jean-Luc Godard nos começa a contar a triste história de Nana, nós ficamos perfeitamente seduzidos pelo seu olhar, esse mesmo olhar que ela irá utilizar quando decide entrar na mais antiga profissão do mundo. E se Jean-Luc Godard, em sinal de provocação, nos informa que estamos a ver “um filme sobre a prostituição que conta como uma jovem e bela vendedora parisiense oferece o seu corpo mas guarda a sua alma”, nós sabemos estar perante uma das mais belas histórias de amor. E quando Nana desiste de jantar com Paul e vai a um cinema de Saint-Michel para ver o filme de Carl Dreyer, ela irá encontrar na figura de Falconetti a sua própria imagem, a morte habita aquela sala onde ela e apenas outro espectador se encontram, verificando-se que esse mesmo espectador está apenas interessado nela.


Depois inicia-se o calvário de Nana na nova profissão, percorrendo as ruas de Paris dedicadas à matéria, como a célebre Rua St. Dennis, fumando um cigarro encostada à parede, ou conversando com as colegas, enquanto espera pelos clientes.


Por fim somos confrontados perante o inevitável comércio do corpo, o negócio sexual onde o amor estará sempre ausente como todos sabemos e os carinhos são comprados como extras, mas como não podia deixar de ser Nana, um dia, irá ser confrontada pela polícia e mais tarde protegida por um proxeneta, que decide tomar conta dela, perdendo desta forma a sua independência e o sentido da vida, porque a partir desse momento o seu corpo estará nas mãos dele, embora a sua alma esteja impedida de ser vendida.


Numa das sequências nas ruas de Paris, a câmara de Jean-Luc Godard fixa-se num cartaz de um filme, por sinal um filme do seu grande amigo François Truffaut, muitos anos antes da célebre zanga que os iria afastar para sempre (se o leitor desejar saber mais leia o célebre livro de correspondência de François Truffaut) e nesse cartaz descobrimos as imagens do filme “Jules e Jim”. E se aqui temos uma homenagem específica a um colega fundador da “Nouvelle Vague”, já em “Viver a Sua Vida” / “Vivre Sa Vie” a homenagem é também aos filmes de “Série-B” tão amados por Jean-Luc Godard como crítico dos Cahiers du Cinema” e nada melhor como dar-lhe a palavra: “todos nós nos “Cahiers” nos considerávamos como futuros realizadores. Frequentar os Cineclubes e a Cinemateca era já pensar cinema e pensar no cinema. Escrever era já fazer cinema, porque entre escrever e filmar há uma diferença quantitativa, não qualitativa. Enquanto crítico já me considerava cineasta. Hoje (recorde-se que estas palavras são datadas de 1962) continuo a considerar-me sempre como crítico e, num certo sentido, sou-o ainda mais do que dantes. Em vez de fazer crítica, faço filmes, mas para neles introduzir a dimensão crítica. Considero-me como um ensaísta. Faço ensaios sob a forma de romances ou romances sob a forma de ensaios. Só que os filmo, em vez de os escrever. Se o cinema acabasse por desaparecer, passava à televisão e se a televisão acabasse por desaparecer, voltava ao papel e ao lápis.”


Como todos sabemos, na ressaca do Maio de 68, Jean-Luc Godard parte mundo fora debaixo da sigla “Grupo Dziga Vertov” (que incluía ainda Jean-Henri Roger e Jean-Pierre Gorin), em busca dos movimentos revolucionários, abandonando o cinema durante longos anos e como não podia deixar de ser passou por Portugal, nascendo o filme “Comment Ça Va”, exibido pela primeira vez em 1975 numa sessão no Palácio Foz, partindo a premissa do filme de uma fotografia tirada aquando de uma manifestação (na qual um civil agarra o braço de um marinheiro que está de punho erguido), só regressando ao cinema em 1979 com o belíssimo “Salve-se Quem Puder” / “Sauve Qui Peut (La Vie)”. Já com a “manipulação” da matéria videográfica, que tanto fascina o cineasta, encontra o seu ponto alto em “Número 2” / “Numero Deux” e por fim a chegada a essa obra incontornável chamada “Histórias do Cinema” / “Histoires du Cinema”.


Olhando neste novo milénio a produção de Jean-Luc Godard, descobrimos que o papel deu lugar ao écran, enquanto o lápis, como instrumento de escrita, deu lugar ao digital, mas como ele sempre frisou referindo-se à sua geração “nós fomos os primeiros cineastas que souberam que Griffith existiu”.


Por fim no último capítulo de “Viver a Sua Vida” / “Vivre Sa Vie”, Nana é levada por Raoul para ser trocada/vendida e será nessa transacção do corpo, recusada por ela, que irá encontrar a morte porque não é o facto de ela ser mulher que irá impedir o gangster de disparar, porque ele pertence a um outro universo e será o destino a fazer com que seja o próprio Raoul que anteriormente se servira dela como escudo a disparar sobre ela, na confusão entretanto gerada, roubando-lhe de forma violenta a vida que ela tanto amou e não soube viver.


Rever “Viver a Sua Vida” / “Vivre Sa Vie” é entrarmos pela porta principal no universo Godardiano, esse mundo feito de memórias cinematográficas, como ele tão bem demonstrou na sua exposição no Centro George Pompidou. Ali vivia a cinéfilia, oferecida ao visitante através de enormes plasmas (e também os maravilhosos ateliers miniatura), cada um deles retratando a história do cinema, não faltando a pequena provocação no plasma deitado em cima de uma mesa, para as suas imagens não ofenderem uma certa moral, essa mesma moral de que se falava precisamente em “Viver a Sua Vida” / “Vivre Sa Vie”, no início da película quando o cineasta se refere ao filme como uma obra que abordava a prostituição, mas no fundo tratava-se de puro engano, porque estamos perante uma das mais belas histórias de amor de um realizador por uma actriz, esse mesmo amor que nós como espectadores somos obrigados a dedicar a Anna Karina, neste filme inesquecível!

Rui Luís Lima

2 comentários:

  1. Jean-Luc Godard - (1930 - 2022) - Foi um dos nomes mais importantes da Nouvelle Vague francesa.
    Anna Karina - (1940 - 2019).

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