terça-feira, 12 de novembro de 2024

Bernardo Bertolucci - "Um Chá no Deserto" / "The Sheltering Sky"


Bernardo Bertolucci
"Um Chá no Deserto" / "The Sheltering Sky"
(Grã-Bretanha / Itália - 1990) - (138 min. / Cor)
Debra Winger, John Malkovich, Campbell Scott, Jill Bennett, Timothy Spall.

Foi num daqueles dias em Paris, com a casa repleta de convidados, que Gertrud Stein chamou Paul Bowles e Jane para junto da janela e recomendou ao compositor e poeta que fosse até ao norte de África, percorrer as estradas, visitar Tânger e descobrir Marrocos em busca do sabor perfeito da Literatura. Eles assim fizeram e nunca mais voltaram, porque não partiram como turistas, mas sim como viajantes: - "um turista só pensa em regressar a casa, enquanto o viajante não sabe se regressa." (1).


E assim Paul Bowles viveu em Tânger desde finais dos anos quarenta até à sua morte em 1999. A sua casa serviu de ponto de passagem para toda uma geração de escritores e poetas norte-americanos, em busca da sua hospitalidade. Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, foram alguns dos que passaram por sua casa. E quando o seu romance "The Sheltering Sky" / “O Céu que nos Protege” foi publicado, transformou-se de imediato numa referência para inúmeras gerações, terminando por surgir a respectiva adaptação cinematográfica, tendo ainda espaço para navegar no interior do universo musical.


Música, interrogam-se alguns? Sim, meus caros amigos! Um dos mais belos temas instrumentais dos King Crimson, incluído no álbum "Discipline", chama-se precisamente "The Sheltering Sky" e recomendamos vivamente a sua audição. Já o livro, que foi dedicado por Paul Bowles à sua esposa Jane, possui uma bela citação de Eduardo Mallea: "O destino de cada homem só é pessoal na medida em que se assemelhar ao que já existe na sua memória." E se nunca leu o livro, recomendamos a sua descoberta e depois, se desejar, poderá sempre mergulhar na beleza musical criada por Ryuichi Sakamoto para o filme de Bernardo Bertolucci, uma das mais belas bandas sonoras do compositor japonês.


Bernardo Bertolucci tinha recolhido uma mão cheia de Oscars com "O Último Imperador"/”The Last Emperor” e todos sabemos como é difícil partir para o filme seguinte, depois de uma chuva de prémios e consensos. Ora o cineasta italiano seguiu o caminho traçado anteriormente, com o segmento "1900" (obra maior da sua filmografia) e "La Luna", um dos seus filmes mais intimistas da sua obra cinematográfica, Assim nasce “The Sheltering Sky” / "Um Chá no Deserto", com uma inesquecível fotografia de Vittorio Storaro, revelando-se uma das suas películas mais belas e perturbantes da sua filmografia.


A história de Pot Moresby (John Malkovich) e Kit Moresby (Debra Winger), assim como o "outro", o intruso consentido, representado por George Tunner (Campbell Scott) percorre o deserto em toda a sua plenitude e intensidade, originando a paixão e a perdição inerente a esse estado supremo do amor. Esta inesquecível história de amor possui como narrador o próprio escritor (Paul Bowles), que surge no início e no final do filme, fisicamente, contemplando os seus personagens, fruto da sua própria carne, já que tal como ele, Pot Moresby é compositor, assim como Kit Moresby é dramaturga, como a sua esposa Jane Bowles. O final é de um esplendor silencioso, quando Kit Moresby se dirige ao escritor em busca de um rumo para a sua existência.


"Um Chá no Deserto" / “The Sheltering Sky” possui, no seu interior, não só a genialidade de Bertolucci, mas também, como referimos anteriormente, a fabulosa fotografia de Vittorio Storaro, de uma sensibilidade extraordinária. É claro que alguns viram nisso exotismo e bilhete-postal de luxo, para europeu ver. No entanto, quem fez essa leitura e lhe chamou um filme falhado, não possui a menor ponta de sensibilidade para ler nas imagens a tragédia da fuga de dois seres no interior do deserto, narrado de uma forma exemplar. Será talvez o momento de fazermos uma nova leitura do romance e aproveitar a edição em dvd para reencontrar o percurso de Kit e Pot e descobrir essa bela e intensa luz que ilumina a obra literária de Paul Bowles.


"The Sheltering Sky" / “Un Chá no Deserto” é um romance que tem sido amado pelo cinema desde sempre, pois tanto Robert Aldrich como Nicolas Roeg tentaram a sua adaptação para o grande écran e, se inicialmente, os actores apontados para dar rosto aos personagens no filme de Bernardo Bertolucci foram William Hurt e Melanie Griffith, pensamos que a escolha de John Malkovich e Debra Winger foi a mais acertada, já que ela respira sensualidade em cada gesto e ele possui no seu olhar a perdição e a inevitável redenção proporcionada pela imensidão do deserto.


Nota: Se pretendem conhecer a obra literária de Paul Bowles, iniciem a leitura pela novela "Muito Longe de Casa" (editado pela Presença) e depois de estarem familiarizados com o calor do deserto, ataquem "O Céu Que Nos Protege" / "The Sheltering Sky" (editado pela Assírio e Alvim) e comparem com o filme de Bernardo Bertolucci; após terem ficado apaixonados pela escrita de Paul Bowles continuem com "Deixai a Chuva Cair" (editado pela D. Quixote) e então estão preparados para partirem tranquilamente através da obra literária deste fabuloso escritor, que a Editora Quetzal, tem estado a editar no nosso país.


Mas, se desejarem, também podem ler "Duas Senhoras Bem Comportadas" (editado pela Presença) de Jane Bowles. E após estas leituras todas retomem as personagens de Kit e Pot e vejam como elas se confundem com as de Jane e Paul.


No respeitante à banda sonora, aproveitem para escutar a música composta por Ryuichi Sakamoto e se tiverem curiosidade suficiente, após terem escutado os temas da autoria do próprio escritor, procurem a música que Paul Bowles foi compondo ao longo da sua estadia em Marrocos.

(1) - Bruce Chatwin foi outro viajante perfeito.

Rui Luís Lima

1 comentário:

  1. Bernardo Bertolucci ao levar ao cinema o famoso romance "The Sheltering Sky" do famoso Paul Bowles, que um dia trocou New York por Tanger, na companhia da sua mulher Jane Bowles, também ela escritora, assinou uma das mais perfeitas películas da sua filmografia. A interpretação de Debra Winger é inesquecível e depois temos a fotografia de Vittorio Storaro e a música de Ryuichi Sakamoto a colocarem a "cereja no topo do bolo" se me é permitida a expressão.

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